sábado, 1 de agosto de 2015

De quando o avô Rui tinha oito anos....

O meu tio Miguel Ângelo

(escrito em 2012 e revisto para inserir novas fotos)



O meu tio Miguel ângelo - A segunda “grande” viagem da minha vida

Não posso falar da segunda sem antes fazer uma referência à primeira.

Eram assim os combóios naquele tempo.

A primeira aconteceu quando eu tinha cerca de quatro anos de idade. Lembro-me do cheiro do trem, misto de comida, de farda de soldados, de fezes de porco e de galinha, vapores de uma fábrica que me passava pela janela quando despertei. 



Foto da Estação de Peso da Régua.

Tinha embarcado á noite em Peso da Régua e ia para o Porto, para depois fazer o traslado para Lisboa. Dormi por bom tempo, porque estava nascendo o dia quando vi a tal fabrica passar pela janela bem devagar. O trem era a vapor, apitava, e nos túneis nos enchia de fumaça, a ponto de todos correrem a fechar as janelas. Olhei à minha volta e vi umas senhoras idosas no banco de trás. Uma estava levantada, ajeitando a sua bagagem na prateleira. Ela ria, todos riam, porque um porquinho que ela levava numa caixa resolveu urinar em cima das pessoas que estavam em baixo. Com o alvoroço, e os comentários, galinhas cantaram. O cheiro de fardas do exército, cinzas, com cintos e botas pretas enceradas com banha de porco provinha dessa mistura. Lembro-me a chegada à Campeã, e a chegada a Lisboa. Eu viajava com minha avó. Possivelmente com mais alguém, mas essa viagem deve ter sido traumática, porque não me lembro de mais ninguém de família ou de amigos nesse trem, a pesar de minha excelente memória. Nem do resto da viagem. Provavelmente estava muito entregue a meus pensamentos ou dormindo de cansado. lembro sim, do transbordo na estação do Porto, para pegarmos o combóio para Lisboa.


A foto é da Av. Almirante Reis junto ao Largo do Intendente onde meu tio trabalhava e morava. Eu, minha tia e minha avó, morávamos umas duas quadras acima, na Rua Francisco Sanches, 26. A dona do andar era a dona Lucília que morava com uma irmã, as duas idosas.   

Havia-me mudado definitivamente de minha terra, Fornelos, em Santa Marta de Penaguião, para Lisboa. Minha vida seria lá, a partir da chegada à estação de comboios de Santa Apolônia.Dois anos depois, meu pai foi para o Rio de Janeiro. Fiquei em Lisboa com meu tio Miguel Ângelo, minha tia Elisa e minha avó paterna, Maria de Jesus Pinto Nogueira. Deixara lá a minha mãe que viria a falecer, muito jovem, em seis anos. Morreu aos 30.

Minha escola primária no Largo do Leão.

Um ano depois eu já estava na escola do Largo do Leão, já lia, escrevia uns bons garranchos. Meu tio Miguel era um “boa pinta”, coisa de ator de cinema. Eu queria ser como ele. As namoradas eram de fechar o comércio, todas bonitas, lindas, cheirosas. Naquela época estava na moda uma canção da Carmem Miranda que cantava " chiquita bacana lá da Martinica".  



Largo de Arroios onde meu tio se encontrava com a namorada. Na parte atrás do fotógrafo fica a ponte da Rua Pascoal de Melo, onde moravam minha prima Alice e a Fernanda, com o Teófilo. Ele tinha uma voz "esquista" porque respirava mal por causa de um ataque cardíaco que tivera. 

Na brincadeira ele dizia que elas eram também minhas namoradas. Eu sabia que não, mas ele não sabia que eu sabia. Nunca contei a ninguém que na minha  infância infantil de 4 anos uma menina um pouco mais velha me convidara para ir para o caminho da estrada para passear e que debaixo das parreiras fiquei a saber a diferença entre meninos e meninas... Como esquecer aquelas calcinhas de algodão e o que estava por debaixo delas? Ora, as namoradas de meu tio, quando eu tinha sete anos, não me iriam mostras as suas calcinhas, nem mais ou menos... Em compensação, já que não as dividia realmente comigo, meu tio trazia-me quase todos os dias uns chocolates da venda, ou umas bolachas, rebuçados, pirulitos. Um dia ele tinha comprado um lenço de cabeça para a namorada como presente de aniversário. Era um lenço verde com pintas brancas, de seda muito fina. Minha tia que fuçava tudo descobriu o lenço e ficou muito feliz e acabou por ficar com ele. Dessa confusão que se seguiu, eu não me esqueço. Descobri pela primeira vez que até família unida pode ter as suas desavenças por coisas que não valem nada. 


Esse de óculos embaixo parece ser o meu tio. A foto peguei na net. Terá sido sorte, ou não é ele?

Para a escola, eu ia a pé, mais ou menos oito quarteirões. Com essa idade, minha vida era levantar, ir para a escola, assistir ás aulas, correr até suar no recreio, almoçar na escola o almoço que minha tia Elisa me levava, voltar a estudar, voltar para casa, comer um lanche, fazer os trabalhos de casa, jantar, assistir ás notícias do dia no rádio, e dormir. As sextas feiras passava um programa da Maria Manuela Patacho com histórias faladas com vários personagens. Era a minha única grande diversão! Isso e me divertir no recreio da escola. No dia seguinte, tudo nova e exatamente igual. Aquilo para mim era uma prisão, um tédio, mas gostava de estudar. Era tudo pelo futuro. 

A foto abaixo é do largo do Intendente

Imaginem quando meu tio Miguel me perguntou, uns três dias antes do grande dia, o da viagem,  se eu queria ir com ele numa excursão que passava pela barragem do Castelo do Bode... Meus pulmões não cabiam no peito, o coração acelerou, a vista ficou turva, e comecei o meu chorrilho de perguntas que nunca mais acabavam. Quanto tempo seria a viagem, aonde íamos, o que havia lá, como era o ônibus, de que cor era, como eram as estradas, se tinha rios, se tudo era parecido com Fornelos...



Não dormi durante três dias e três noites. Nem pregar olho... Quando ia dormir, o papagaio do corredor gritava: “Olá... Quem passa?... É o rei que vai pra caça... Ó papagaio looooouuuuroooo”. E lá ia eu sonâmbulo para o colégio.
Não perdi um só segundo da viagem, olhando as paisagens, casas, mosteiros, a cidade de Caldas da Rainha, o Mosteiro da Batalha a barragem do Castelo do Bode com a água represada de um lado e o rio pequeno, diminuto, lá embaixo, do outro lado.  Aquilo me impressionou. Talvez um dia viesse a ser engenheiro, porque eu ia muito bem nas matemáticas e nas ciências.   
Lembro-me vagamente do grupo (da malta) que dizia que eu era bem comportado, das fotos, dos prédios, das paisagens planas que eram tão diferentes das montanhosas de minha terra natal. Durante a viagem vinha um cheiro a feno que entrava pelas janelas, e isso me lembrava o sabonete que usávamos lá em casa: Feno de Portugal. Olhei em todo o ônibus. Não vi nenhuma mulher por quem meu tio pudesse interessar-se. Afinal, nós tínhamos o mesmo gosto para elas. Até as dividíamos... E sei que se houvesse alguma, ele ia dar aquela piscada fatal que me ensinou a dar. Na minha inocência de então, fiquei impressionado como que as mulheres se impressionavam com uma piscadela, sem saber quem o sujeito é, o que faz, o que quer. Sempre perguntavam depois, quando já estavam "amarradas". Perguntei-me, sem dar muita importância, porque razão o meu tio não tinha levado a namorada na excursão. Só meses depois descobri.Meu tio também me deixava. Ia para o Brasil, para ganhar a vida junto com o meu pai. Eram irmãos, amigos, seriam sócios.

A loja de meu pai e meu tio era na Rua Alexandre Mackenzie. no centro do Rio de Janeiro, na foto abaixo, no segundo prédio da direita para a esquerda. 

Depois dessa viagem, se a vida já me parecia uma prisão, passou a ter vapores de algo pior. Saudades dos bons tempos, das canções da ‘Chiquita bacana lá da Martinica “ da Carmem Miranda, dos passeios com as namoradas de meu tio, dos doces que me trazia, do óleo do fígado de bacalhau que me ajudava a tomar, dizendo-me que "um homem é um homem e um bicho é um bicho" e que os homens têm que ser fortes. Saudades do meu tio que me ensinava a ler e a escrever e que leu um livro sobre um velhinho que se tinha perdido da família e que na noite de natal, pobre e esfarrapado, batera à porta da sua própria família para pedir uma esmola e saiu sem dizer quem era... Meu tio me ensinou também os bons sentimentos.




Grande tio, por uns tempos o meu pai, sempre o meu grande amigo, um exemplo de homem forte, determinado, a quem nunca vi discutir em família.  Sei que cada um é como é. Ele é assim.Um grande abraço, tio Ângelo, cheio de saudades e como novidade, meu filho Beto é muito parecido com o senhor. Nunca o ouvi levantar a voz pra ninguém. É verdade que meu pai também era assim. 


Rui Rodrigues

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Mais do que duas viagens no tempo Para Mayoca

Mais do que duas viagens no tempo


Não há ninguém neste mundo que possa dizer que não respeitei os idosos e que não os ouvi, sempre, atentamente. Aprendi muito com eles, hoje sou idoso também.
 

Um dia peguei o possante Renault Clio 1.0, “vermelhão francês cansado”, mais que suficiente para as estradas portuguesas, e pus-me a caminho, com minha família, desde Lisboa até o Algarve. Abalamos da Quinta do Junqueiro onde vivíamos, até Armação de Pêra onde ainda vivem meus tios (amados) Miguel e Nilde.
 
Lembro que pelo caminho ainda dissertávamos sobre aqueles casos de pessoas que pegavam carona e eram encontradas abandonadas à beira da estrada, ainda desacordadas, depois de terem passado por cirurgias que lhes tinham extirpado um rim, parte do fígado, ou um pulmão, para serem vendidos no mercado negro das “doações” de órgãos. Muita fantasia, em que as vítimas eram anestesiadas por “boas noites cinderelas” ou com clorofórmio durante as caronas. Por aquela época eu andava pelos 45 anos e meus tios pelos sessenta.
 
Quando chegamos a Armação de Pêra vimos uma vila simpática, bem algarvia, casas na maioria brancas com aconchegantes chaminés típicas, e lá estava, numa esquina com alto muro, de frente para uma plantação de amendoeiras ainda não em flor, a casa de meus tios, com pomar, vinha, horta e até um mamoeiro protegido por plástico para combater o frio, para ver se vingava e dava frutos. Uma vez brasileiro, é como vício... Gruda no corpo, na alma. Creio que se todos os europeus pudessem ou se arriscassem, morariam aqui no Brasil. O problema são as políticas e os políticos que estragam a beleza da terra. Por lá também, mas parece que são mais comedidos, ou têm mais medo das leis.

Ficamos lá num final de semana mais extenso, não me lembro se sábado domingo e segunda, ou sexta sábado e domingo. Pois por incrível que pareça, ainda aprendi com eles várias coisas.

O que mais nos interessa a nós, aqui no Brasil, que convivemos com uma inflação galopante, foi a arca que compraram. Arca é aquele freezer horizontal, enorme. Estava cheio... Aliás, creio que nunca se esvazia. É uma lição de economia doméstica. Sempre que saem a passeio pelos supermercados, ou por granjas, e vêem produtos com preço “bom” e sabem que precisam repor estoques, compram. Tática que faz parte da batalha contra a inflação. Mas não era só desse modo que economizavam enquanto se divertiam.

 
O vizinho em frente, quando colhia as amêndoas, dessas que se compram pelo natal, não colhia todas porque nem todas estavam maduras, e não contrataria ninguém para recolher os restos porque não valiam a pena. Para meus tios sim, e com permissão do vizinho, lá catavam uns bons baldes de amêndoas... E com outros vizinhos, cachos de uvas remanescentes para fazer vinho, azeitonas para fazer conservas e azeite... Bebi vinho do “Miguel & Nilde”, azeite da mesma “marca”, ambos excelentes, amêndoas torradas como aperitivo, que não eram apenas as amêndoas. Eram deliciosas as alcachofras colhidas a monte. 


Meus tios nascidos no Norte e a meio caminho entre Algarve e Norte (ela é brasileira de Coimbra), são e sempre foram o meu aperitivo para as coisas boas da vida, um belo exemplo de companheirismo. Mas tenho minhas imperfeições, ou não, e não aprendi tudo. Claro! Sei muito de sua vida, mas não sou eles, nem sei tudo nem tenho que saber. Armação de Pêra tem praia, pescadores, redes, o clima não é tão frio, uma casa, uma família, vinho às refeições, uns passeios a pé, calor humano até no inverno, lembranças quase seculares. Muita coisa mudou lá fora. Dentro da casa, quase nada. Só uma adaptação aos tempos e á idade.
 
Aprendi muito com eles. Dou-lhes minha gratidão e lhes agradeço boa parte dos meus prazeres da vida. A felicidade não é coisa simples, mas não tem nada de complicada. Basta ficarmos felizes conosco mesmos, se nossa moral não nos condena. E muitas vezes nossos "pais", nossos maiores exemplos, nem são os pais, mas os tios, os avós, os primos, e até casais de amigos... E fico imensamente grato a Fornelos onde eu, meu pai, minha tia Elisa e meu tio nascemos. Obrigado, Brasil, que tão bem, mas tão bem me acolheste e à minha família. 




® Rui Rodrigues.   

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Lendo Tudo...





Infância é aprendizado. Exceto os aspectos sob a égide do masculino-feminino, o resto do aprendizado é idêntico para ambos os sexos. Nenhuma diferença. Minha neta é a segunda prova disso, a primeira foi minha filha, porque participei da educação das duas. Infelizmente, da minha neta, muito pouco, quase nada. Digo infelizmente porque gostaria de participar mais, não porque faça falta. Minha filha é mãe muito competente. Chego a achar, por vezes, que ela que é a avó, e a avó a bisavó, eu o bisavô. A mãe dela é uma avó! Gostei desse aspecto!


Minha neta me faz voltar aos tempos daqueles momentos em que nos lembramos dos momentos felizes de nossa infância. Sinto-me um amiguinho dela quando estamos juntos, e não o avô. Mas o mérito é todo dela. É ela que me faz e não eu que a faço. Por mim seria um pouco mais “alemão” com ela, mas jamais me permite- e me permiti -isso...Ela é impecável!... E com seis anos recém feitos, pouco passa dos cinco, lê tudo, até a palavra “palhaçada” num álbum de férias da “Mônica”, que a mãe lhe comprou numa banca de jornal em Cabo Frio e que ela colore com todo o cuidado e as melhores combinações de cores, preenchendo os espaços sem “borrar”. Nenhuma historinha atual traz imagens de bondes, que lá na terrinha onde nasci chamamos de “elétricos”.

 
Na minha infância havia. Amarelos fechados para primavera outono e inverno, e os vermelhos que lá se chamam de “encarnados”, abertos, para o verão europeu que é quente. Quente e seco, abafado, assim como em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. A maioria de nós, brasileiros, não se lembra do que é andar de bonde, e por terras imensas, de largas avenidas, não tem como saber o que é viajar num bonde em ruas estreitas, cujas portas, janelas e pessoas passam zunindo, a jato, que nem dá tempo para ler o numero dos prédios e casas, nem quase o rosto das pessoas porque a velocidade não deixa. Pois foi com os bondes que aprendi minha técnica de leitura dinâmica. Eu era um pouco mais velho. Já tinha sete anos quase acabados, quando aprendi a ler. Tal como minha netinha, eu queria ler tudo. Aprendi a ler a jato sentado numa cadeira de bonde, e tentando ler cartazes de anúncios e tabuletas de lojas... Muitos outros passageiros devem ter achado que eu era maluco, porque volta e meia torcia o pescoço só para acabar de ler o que estava escrito na tabuleta. Muitas vezes me deparei com passageiros no banco detrás acompanhando o meu olhar não fossem perder alguma coisa que eu vira e eles não. Pessoas são assim mesmo. Todas querem ver o que os outros estão vendo, mas não treinam para ver. Com aquela idade, e se bem entendi o Freud, quando olhava os rostos de pessoas que via passar feitos relâmpagos, eu deveria estar procurando algum rosto conhecido naquele mundo imenso de uma Lisboa cheia de desconhecidos simpáticos que muitas vezes me ajudaram quando pedi informação ou de moto próprio se acercaram de mim perguntando se estava precisando de ajuda.



A leitura nos abre caminhos para um mundo totalmente novo. Amplia os horizontes. Acho até que é a primeira responsável pelo crescimento do volume cerebral. É preciso ter mais massa cinzenta para decorar tudo o que se lê, raciocinar sobre o que se leu, definir uma avaliação ainda que seja temporária, e guardar como numa biblioteca. A biblioteca, cérebro ou cachimônia, tem que ser muito grande. Para se ter uma ideia prática do que estou tentando dizer, aconteceu com minha netinha em Búzios. 


Antigamente, antes de aprender a ler, ela passaria pelo cartaz, talvez louca para saber o que estava escrito, o que eram aquelas letrinhas no cartaz, e passaria batida sem dar mais atenção. Ah... Mas agora sabe ler. Então, parou em frente ao cartaz e leu: “Táxi” e mais alguma coisa que lhe fez dar um estalo, puxar o braço da mãe e dizer: Olha mãe... Táxi para a praia... Eu queeeero! E como iam mesmo para uma praia daquelas, foram de táxi. Quando criancinhas que sabem ler e perguntam o que é aquilo, já não dá pra dizer que “não é nada que te interesse”... Crianças por vezes se deixam enganar para não "criar" caso. Elas sabem ler !

Não acho que, particularmente, minha netinha se pareça comigo, mas é quase igual àquela criança que eu fui. Agitada e louca por leitura. 


® Rui Rodrigues

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Piratas também amam: Mary Read - para ler com mais idade

Piratas também amam: Mary Read.

Se gosta de histórias de piratas, pegue seu chá, seu cafezinho, seu pacote de biscoitos, sua cerveja água ou uísque, e sente-se confortavelmente, por que a história não é curta, sem ser longa. Vamos começar sem o famoso “Era uma vez...” Saiba, porém, que naquela época quem tomava banho três vezes ao ano era cheiroso(a), os perfumes eram raros e caros, morria-se de doenças desconhecidas, roupas grossas escuras e quentes serviam para diminuir a fedentina corporal. Em dia que a história não conta, homens cortaram as calças pelo joelho para diminuir o calor, criando as primeiras bermudas e mulheres jogaram fora certas partes de seu vestuário. Anne Bonny e Mary Read usavam calças

  1. Mary Read
Mary Read desde cedo usava roupas de menino. Não por opção sexual. Nascera na Inglaterra filha ilegítima da viúva de James Kid, um capitão do mar, e sua mãe não quis perder a pensão da sogra, que só era dada a filhos homens. Ela tinha um irmão mais velho, mas este morreu e ela herdou a pensão. Aos 13 anos foi admitida como pajem de uma senhora francesa muito rica, mas não agüentou o trabalho. Fugiu ou foi apanhada pelos recrutadores que palmilhavam as ruas em busca de jovens em idade de embarcar ou combater, porque era assim que se fazia recrutamento, e embarcou num navio de guerra. Combateu na Flandres na infantaria com grande ferocidade. Alistou-se mais tarde na cavalaria e se apaixonou por um soldado pouco tempo depois de confessar que era uma mulher. Casaram-se e compraram uma taverna na Holanda. A “The Three Horseshoes” – As três ferraduras próximo ao castelo de Breda. Quando o marido morreu, logo depois, Mary Read voltou a vestir-se como homem, tentou engajar-se no exército, mas não deu certo e embarcou para as Índias Ocidentais como marinheiro. Durante a viagem seu navio foi atacado pelo capitão Jack Rackham e feita prisioneira.  

  1. Anne Bonny
A família de Anne Bonny mudou-se para o novo mundo com a família. O pai era advogado. Casou-se com um marinheiro pobre de nome James Bonny. Marinheiros pobres eram os comuns, da Marinha de Guerra, ou da mercante. Só enriqueciam marinheiros de descobertas e piratas, mas pouco havia já para descobrir por aquela época. Diz-se que o marido de Anne não era muito valentão e era dos valentões que Anne gostava. Homens para ela tinham que ser destemidos, valentes, aventureiros, estarem sempre ávidos para manter relações sexuais, coisa que só acontecia com maridos durante os primeiros anos de casamento. E com as esposas, também. Além de descobrir novos mundos, Anne queria descobrir novos homens e se possível ficar rica, mesmo que lhe custasse a vida. Qualidade e quantidade era o que queria, queria o mundo. Largou o marido e foi procurar seus objetos de desejo, suas aventuras, em Nassau[1] nas Antilhas Holandesas. Apaixonou-se por “Calico Jack” Rackham, capitão de um navio pirata. Anne Bonny deveria ser uma mulher muito interessante sob todo e qualquer aspecto, sempre pronta, disponível, conhecedora dos desejos dos homens sem, contudo, agir de forma a lhe faltarem com o respeito. Ela sabia defender-se com pistola e espada como qualquer marinheiro belicoso e usava calças.


  1. Na prisão
Agora Mary Read estava grávida e febril. A seu lado na cela escura e fedorenta, coberta com palha, estava Anne Bonny, sua companheira, também grávida. As duas haviam sido capturadas pela esquadra britânica enquanto praticavam a pirataria nos mares do Caribe a bordo do navio pirata da esquadra de “Calico Jack” Rackham. Estavam condenadas à morte na Jamaica. Rackham, o terrível, era casado com Anne Bonny. Mary Read com Bartholomew Roberts que se transformara num valente e temido pirata a serviço de Rackham. A lei inglesa nunca falhava com prisioneiros, assim que tinham a morte como certa. Seria uma questão de poucos meses. A corte as condenara mas a sentença só seria executada após o nascimento das crianças. Uma semana depois de dar à luz uma criança que morreria poucos dias depois, Mary Read faleceu. A criança de Anne Bonny morreu também, mas o pai, rico, pagou-lhe a fiança e ela voltou para o marido que abandonara. Não deixa de ser interessante que Anne Bonny voltasse para o marido e que este a recebesse, mas não podemos esquecer que o pai de Anne era rico. Há quem diga que não se juntou ao marido, mas que foi viver com o pai. Faleceu em 1782.

  1. Certas coisas essenciais antes de prosseguirmos.

Histórias de piratas são sempre muito interessantes por que causam medo, temor, sem ser um medo ou temor real: Piratas já não existem e todo mundo sabe disso. No entanto, no apogeu dos navios exclusivamente à vela, eles foram terríveis, cruéis, a maioria não fazia prisioneiros nem poderia fazer: Não haveria mantimentos para todos, raramente tinham tripulação adicional para fazer navegar os navios apresados, e muitas vezes estes eram muito pesados, lentos. Piratas sempre tinham pressa. Normalmente afundavam os navios que conquistavam em batalhas sangrentas.

Algo que é necessário saber-se, é que a Inglaterra começava a tornar-se a Rainha dos Mares. Não querendo entrar em conflito com seus amigos e aliados europeus, a realeza inglesa permitiu e incentivou a pirataria que lhe dava grandes lucros. Visando lucros, sempre lucros, criou o sistema de fiança: Alguns crimes poderiam ser relevados em troca de bom e gordo pagamento. Mas pirata que não desse os lucros que deveria dar, ou prejudicasse pessoas erradas, tinha a cabeça posta a prêmio sem direito a fiança. Teremos mudado muito de lá para cá? Bem... Estamos falando de um período que vai desde 1645 a 1782.   

  1. O mar
O mar atraía e assustava. Atraía porque significava conhecer novas terras, olhares amplos e infinitos entre muitos tons de azul – do céu e do mar até verdes - aventuras, mudança! O mundo sempre quis mudanças nem que fosse de ares. E medo! Medo de fogos a bordo, de tempestades, de marasmos, de sede, de escorbuto. Principalmente de piratas. Só mulher bonita se salvava de um ataque pirata e mesmo assim não eram todas. Por vezes os piratas tinham que escolher. Os mares estavam coalhados de navios piratas e de navios de guerra que vasculhavam os mares em proteção a embarcações comerciais que transportavam ouro, especiarias, pérolas, sedas, açúcar, rum... E escravos! Por esta época, a Inglaterra era uma das principais potências no trafico de escravos, que só desistiu desse comércio por causa da revolução industrial.

  1. Os piratas que navegavam pelos mares.

Por essa época andavam nos mares os piratas mais famosos e terríveis de todos os tempos como William Kidd, Edward Teach, Bartholomew Roberts, Sir Henry Morgan, Bartolomeu Português, Jack Rackham, Anne Bonny, Mary Read e alguns outros sem muita expressão, entenda-se “sem expressão” sem causar tanto medo. Sem medo não pode haver aventura, sem aventura não se sai do lugar.

William Kidd era um elegante escocês que nascera em 1645 e fora feito comandante por sua tripulação exatamente quando perseguia piratas a serviço da Marinha. Fora líder como cidadão de bem em N. York, e após ter apresado uma embarcação da East Índia Company, seu maior feito, enterrou o tesouro na ilha de Gardiner. Apanhado em Boston foi para a Inglaterra e condenado à forca. Por duas vezes se livrou porque as cordas se romperam, coisa inadmissível para os serviços de sua majestade britânica, mas acabou sendo morto e seu corpo exposto, amarrado com correntes à beira do Tamisa em 1701.

Edward Teach era o famoso “barba negra”, talvez o mais famoso de todos. Inglês, nascido em 1680, tinha quatro embarcações e cerca de 300 marujos de primeira. Atacou e venceu o famoso HMS Scarborough e capturou mais de 40 navios mercantes, passou na espada muitos prisioneiros reféns. Tinha uma namorada de 16 anos, que queria dizer-lhe como agir e fazer. Embora mulherengo, deu a menina para entretenimento da tripulação e não há notícias dela. Numa batalha com a Marinha real, O Barba Negra foi decapitado e sua cabeça pendurada no rio Hampton como exemplo em 1718. Mas que exemplo, se a Rainha incentivava a pirataria? Nada diferente dos dias de hoje...

Bartholomew Roberts “Black Bart” nasceu na Inglaterra em 1682, e ainda pequeno sofreu ataque de piratas. Em vez de se inibir, foi eleito por sua tripulação e se transformou talvez no mais bem sucedido de todos os piratas, se é que se pode chamar a isso de sucesso: Capturou mais de 400 navios, uma façanha. Era admirado por sua tripulação que lhe chamava de “à Prova de Pistola”. Foi morto por um capitão também britânico, Chaloner Ogler, durante uma batalha naval em 1722. Talvez seja o mais admirado dos piratas.  


Anne Bonny era irlandesa e nasceu em 1700, cerca de 12 anos após a morte de Henry Morgan, que de tão bons feitos para a coroa britânica [2], foi agraciado com o “Sir” de cavaleiro, mas durante muitos anos ainda seria um exemplo para todos de um pirata bem sucedido. Morreu confortavelmente na Jamaica, porque viver na Inglaterra que antes da condecoração o condenara, era-lhe demasiado penoso por se sentir isolado e descriminado. Por outro lado, e sob o ponto de vista da corte britânica, que piratas se atreveriam a invadir a Jamaica com Morgan por lá? Anne Bonny conseguiu arranjar uma amiga em meio a tantos navios e ilhas cheios de piratas truculentos, sanguinários, interesseiros, dominadores. Esta é uma das histórias sobre ela: É como a imaginei dentro do contexto da época. A partir deste ponto, muito é verdade, um pouco é lenda, uma pitada é de imaginação.  

  1. O encontro.
Quando o navio onde Mary Read viajava a caminho das Índias Ocidentais foi  atacado pelo de Calico Jack, nem toda a tripulação foi dizimada. Mary foi escolhida para continuar a bordo como parte da tripulação de Rackham, o Calico Jack, que tinha Anne Bonny como companheira. Ambas sentiram uma atração mútua, e ficaram amigas. Talvez mais que uma simples e inocente atração, porque tudo a bordo era muito estranho, fora dos padrões da época. As duas vestiam calças, lutavam como homens. Bartholomew que se apaixonaria de forma mútua ou conveniente por Mary, gostava de se vestir com um casaco vermelho com estamparia de flores douradas e era religioso, usando um crucifico enorme pendurado do peito, coberto de diamantes [3]. Bartholomew Roberts, aliás, mantinha regras de bons tratos a mulheres a bordo, proibia o consumo excessivo de álcool e fazia rezar missa regularmente aos domingos. A impressão que se tem é que o terrível era o Rackham, realmente, e o passivo era Roberts [4]. Nada de admirar portanto que houvesse a bordo todo o tipo de relação sexual entre os quatro, ficando até difícil dizer-se de quem eram os filhos de Mary e de Anne. Talvez de Rackham mais certamente ou do Roberts de casaca vermelha com estampas de flores douradas que rezava missa e desejava boa conduta a bordo. Não tomava rum como todo mundo. Tomava chá. Entre as duas, a julgar pela atração do primeiro encontro até que Mary revelasse que estava vestida de homem mas que era mulher, não se poderia descartar a hipótese de uma relação muito mais afetiva entre as duas. Mas não nos iludamos com Bartholomew Roberts. Ele e Mary atacaram as costas brasileiras, as de África, da América do Norte, enforcou o governador da Martinica Francesa, e impôs pesadas perdas à frotas mercantes de companhias britânicas. Afirmar alguma coisa sobre estes e estas piratas é temeridade. Podem ressurgir numa noite de nevoeiro e fazer-nos engolir as nossas más línguas.


® Rui Rodrigues






[1] Nassau foi fundada por Maurício de Nassau, de certa forma um pirata que andou invadindo Pernambuco no nordeste do Brasil. 


[2] Invadiu a rica cidade do Panamá saqueando-a para a coroa britânica, com 1.200 homens.
[3] No filme os Piratas do Caribe, o capitão Sparrow sugere tratar-se de Bartholomew
[4] Assim como Batman e Robin.